sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Tenente Couto - PMPE - escreve sobre sua experiência pós terremoto no Haiti

04 de fevereiro de 2010
Dizem que escrever faz bem pra alma, bem tomara porque estou precisando mesmo.
Vivendo todos esses dias fatídicos pós cataclisma, sinto que estou envelhecendo em uma escala diferente dos meus demais semelhantes , meus dias passam devagar , mas em sentido diverso, a sensação é de que meses se passam em apenas um dia, especialmente quando esses dias são vividos na cidade fantasma de Bel Air.
Quando a noite cai, posso ouvir o som do silêncio, acreditem amigos, é simplesmente possível, vejo os corpos dos vitimados remanescentes que foram esquecidos e que apodrecem sendo disputados por animais famintos e de diferentes espécies agora (Cães, Gatos, ratos, porcos, abutres, insetos, larvas), pois cada um reclama seu dote, cada um quer o seu bocado e a fartura de carne humana um dia acaba, mas até lá somos obrigados a enxergar o inevitável, a sentir os odores pútridos desagradáveis e principalmente se entregar a ansiedade.
A nós cabe esperar que um dia, a própria natureza através dos seus, dê um fim a esse cenário, pois em nossa grande impotência diante de tal evento, tudo o que realmente podemos ainda fazer é patrulhar, prevenir e vigiar em função dos sobreviventes...
Pasmem os incrédulos, o ser humano nesse estado deixa simplesmente de ser “Humano”, mas é interessante o que pude observar, pois também não se tornam imediatamente animais irracionais e como estou acompanhando essa “involução” que se fortalece pelo Estado de necessidade, surgem aqueles que ainda levantam a bandeira da Paz, que se entregam de corpo e muito mais de alma, sem nem sequer perceber o massacre da fadiga diária, a mudança do estado emocional e especialmente a “metamorfose” psicológica do ego que, se instala aos poucos, sorrateiramente, dando sinais da devastação que, embora postergada, poderá ser vivenciada em outros tempos longe daqui (se isso for realmente possível)...
Onde estou, nem Dante em seu mais íntimo devaneio poderia descrever com sua ávida imaginação, nem Hobbes com sua teoria Social “Do homem é o lobo do Homem” ou até mesmo minhas próprias palavras poderiam traduzir o que meus olhos viram, vêem e queira Deus que não vejam nunca mais (a cada dia assim o desejo, mesmo sabendo que é em vão).
A vida não era assim. Hoje, depois de 15(quinze) anos de experiência profissional Militar como Servidor Público, no meu estado, como Defensor da Justiça e do Direito por vocação e intelecto, posso afirmar categoricamente que NÃO existe e nem existirão cursos militares ou civis, treinamentos duros ou especiais que preparem o Homem para uma experiência como a que vivo, e por isso, fui obrigado a encarar os meus conceitos sobre tudo que achava que tinha valor, sobre tudo que acreditava ser o ideal, sobre a minha vida em si, sobre o que tem importância e é essencial para sermos felizes.
Antes eu não sabia o real significado daquele ditado popular: “O que os olhos não vêem, o coração não sente”. Vim , Vi, mas em nada me sinto vitorioso. A sensação de impotência ainda percorre em minhas veias e tudo que posso fazer, já estou fazendo dentro do que me é permitido...
A meus amigos que se foram com essa tragédia (Especialmente o General Emílio, o Cel Cysneiros, O Ten Cel Adolfo, o Ten Cel Guimarães e o Ten PMDF Cleiton Neiva) Operadores da paz, Profissionais ímpares, Pais, filhos, esposos, cidadãos, seres humanos, gostaria de dedicar minha energia remanescente, minha sanidade afetada, porém ainda firme, meu labor contínuo e diário, minha convicção que suas vidas não foram em vão e meu respeito e agradecimento pela sua estadia ainda que breve, pois tive a honra de tê-los ao meu lado.
A vocês, meus caros , invoco a justiça divina e rogo que de alguma forma, em essência, nos guardem e nos protejam dos males que se projetam e nos atordoam a cada dia.
Muito Obrigado por tudo e nos perdoem por sermos falhos e limitados, pois um dia ainda nos encontraremos, seja lá onde for e gostaria de ser recebido de braços abertos pelos reais heróis dessa história chamada Haiti...
RICARDO COUTO – UM BOINA AZUL A SERVIÇO DA PAZ
CMT K9UNIT

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